terça-feira, 29 de maio de 2018

AFUÁ: DIARIO DE UM EMPINADOR DE PIPA

Esse texto conta um pouco da minha história como empinador de pipa. O texto é enorme, portanto deite-se ou sente-se e leia com calma, desculpa pelos erros ortográficos e de concordância também...Rsrsrs. As palavras em negrito são gírias usadas pelos empinadores e o significado delas estão no final do texto.

Pirralho empinando uma pipa. Não sei de quem é essa foto, só sei que peguei da internet.

Nos trapiches de Afuá, sempre lotados de crianças e adolescentes, mesmo debaixo de um sol escaldante, todos estão a procura dos melhores ventos para dar um laço.

Quando chegava o verão, por volta de maio, as pipas começavam a aparecer nos céus de Afuá, mas elas não eram tão valorizadas quanto as rabiolas de papel que se tivessem um desenho bonito e rabo de fita então... ai que a mulecada não desistia de correr atrás dela, ela podia até engatar numa árvore, mas a mulecada subia mesmo assim, disputando cada ponto de apoio na base do tapa! Tinha aquelas pezetas também, que eram as pipas feias que nem subiam, nem voavam. Mas era em julho que realmente o negócio ficava interessante! Aumentava o número de adversários e de pipas! É que já estava todo mundo de férias.

Rabiola de papel.

Pipa feita de sacola.

E quando ela caia no solo então, todo mundo ficava a espera querendo a rabiola de papel, quando alguém pegava dizia "deixa, deixa", porém se mais de um moleque pegava ela, aí começava uma briga eterna pra saber quem ficava com ela...Nesse caso duas coisas podiam acontecer, ou eles se dividiam, um ficava com a rabiola de papel e o outro ficava com o rabo de fita. Mas se ninguém entrasse em um consenso eles resolviam guisar a rabiola, ou seja quebrar, destruir para que ninguém fique com ela.

Rabiola com rabo de fita. Sonho de consumo de todos.

Sortudo mesmo é quem cortou e arou uma pipa ou rabiola, o azarado é quem tinha cerol manteiga.

Seu carretel de linha podia ser um simples pedaço de pau ou uma lata de óleo, de leite ninho ou então de Nescau. Mas também podia ser um vidro de desodorante tabu ou alma de flores... rsrsrsrs.

Linha enrolada na lata de nescau..kkkkk

Que saudade disso.

As vezes eu pedia da minha mãe. "Mãe posso empinar pipa no trapiche?" Ela dava logo um ralho daqueles. "Não, muleque, vai procurar o que fazer vai estudar, vai dormir." Então eu ia empinar do quintal​ de casa mesmo ou do castelo da caixa d'água.

Entre os empinadores haviam vários tipos:

Haviam aqueles que não tinham pena de dar um laço, pois se perdessem sua pipa era só comprar ou fazer outra.

Haviam os penosos que não queriam dar laço nem perder sua pipa, pois não sabiam fazer e nem tinham dinheiro para comprar outra, na visão daqueles que queriam dar laço só ficavam no trapiche para atrapalhar o espaço aéreo... rsrsrsrs... Geralmente se ouvia "sai daí penoso, sai daí penoso". Na maioria das vezes essa pipa que ele tinha, pegou em algum laço.

Havia aquele que era conhecido e temido por ter o melhor cerol de todos e que todo mundo queria descobrir o segredo do cerol dele.

Havia aquele que tinha o pior cerol de todos e que sempre perdia sua pipa em um laço e que sempre era motivo de piada entre os amigos.

Havia aquele que sempre ficava lá embaixo esperando um laço para correr atrás da pipa.

Havia aquele que sempre tinha as rabiolas mais bonitas e com rabo de fita e que não gostava de empinar pipa feita de sacola.

Havia aquele que nunca comprou um carretel de linha e que dependia de doação dos amigos ou então quando todo mundo ia embora, ele ia até o trapiche coletar os restos de linha...e ia emendando pedaço por pedaço até formar um carretel de linha, esse era eu.. rsrsrs...as vezes roubava linha de costura da mãe.
Quase ninguém se arriscava a dar laço com alguém que tinha nó na linha. Esse era o famoso laço porco...Kkkkk.

Havia aquele que tinha pena de linha. Ele sabia que sua pipa ia ser cortada no laço por isso não discaía tanta linha. Isso irritava o adversário, geralmente se ouvia "discai linha penoso".

Havia aqueles que não sabiam nem dar cabeça na pipa (kkkkkk), geralmente eram crianças.

Haviam alguns que não estavam nem aí, davam laço com a linha branca mesmo, ou seja linha não encerada.

Haviam aqueles que gostavam de impressionar, exageravam no tamanho da rabada. Às vezes tinha pipa com rabo de 5 ou 10 metros de comprimento.

E tinha o mais odiado de todos! O famoso puidor de linha. Essa pessoa na maioria das vezes já tinha perdido sua pipa em um laço, por isso ficava perto de alguém que tava empinando e, no discuido da pessoa, ele corroía a linha com o dente e ia embora. De repente, a linha do empinador se arrebentava "do nada".

Eu me matava correndo atrás de uma dessa..kkkkkk

Modinhas da época.


Era modinha pendurar a pipa, ou seja, puxar a linha para a pipa subir rapidamente por baixo da linha adversária. A galera também gostava de Aparar as pipas, ou seja usar a própria linha para segurar no ar um papagaio que vem chinando.
Tinha uns que diziam revira ele. Bom, revirar uma pipa era tarefa para os mais experientes, consistia em passar a linha sobre a do adversário até ficar quase fora do vento, e depois retornar, passando a linha também por baixo, é um tipo de laço mais eficiente A galera gostava também de enterrar a pipa, ou seja, dar cabeça na pipa, deixando-a numa rápida trajetória para baixo.

Cortou e arou.

Coisas que irritam um empinador de pipa:


O famoso bolô na linha. Realmente não tem coisa mais estressante do que enrolar a linha e se deparar com um bolô enorme, pois se você não conseguir desmanchar o nó, pode perder muitos metros de linha.

A chuva e o pouco vento;  Imagine a cena, você está empinando sua pipa normalmente, já descaíu toda sua linha, sua pipa está a mais de 50 metros de altura e de repente do nada começa a chover...se a sua rabiola for de papel então... ai o desespero é total, pois a chuva pode furar o papel da rabiola, sem falar que pode estragar o cerol da linha. A pessoa enrola a linha o mais rápido possível, corre o risco até de se cortar por causa do cerol.

Laço porco também deixava a galera furiosa, a ponto de brigar.

Como já falei, o pouco vento também é problema, pois você acorda em um belo dia ensolarado e vai para o trapiche empinar sua pipa...mas ela não sobe! É de cortar o coração...

Outra situação que nós odiávamos: pipa engatada. Pense no seguinte, a pessoa está prestes a dar o laço e de repente a pipa inclina para baixo e engata numa árvore, telhado ou num fio de alta tensão. Nesses dois primeiros ainda pode recuperar subindo na árvore ou no telhado, mas no fio de alta tensão... meu amigo.... é complicado!
As vezes a pipa engatava em um lugar tão alto que não dava pra subir..o jeito era jogar um bode. Assim dava pra pelo menos pegar a linha ou o rabo da pipa.
Quando engatava nos fios da rede elétrica sempre os moleques ficavam puxando a pipa e os adultos sempre ralhavam "seus bando de muleque pode parar de puxar, vai dar choque vocês vão morrer"....Dito e certo! As vezes dava choque e explodia os fios lá em cima e todo mundo saia correndo..Kkkkkkkkkkkk...(to rindo com respeito).

Outra situação que nós odiávamos: o matador de linha!
Ele simplesmente matava a linha. Quando a pipa era cortada, a linha caia sobre os telhados e demorava um pouco pra terminar de enrolar ela no carretel. Aí os espertinhos (eu era um..Kkkkk..) viam a linha passando pelo quintal e atorava com o dente ou tesoura. Dava pra roubar um pedação de linha. Eu adorava fazer isso, mas não gostava que fizessem o mesmo com a minha linha. (Kkkkkkkkkk porque sim).

Outra situação que eu odiava: alguém cortar a pipa e ela cair na água. Égua, não. Isso era horrível. Se ela caísse perto da margem e a maré tivesse grande os muleques iam pegar ela nadando. Mas se a maré tivesse seca, tinha que ir de casco.

Mas se a pipa ou rabiola inclinou para baixo de repente e engatou, provavelmente ela estava rabeando ou pensa. Neste caso a solução é aumentar o rabo, colocando mais sacola ou fita. Ou então colocar um penso em um ou nos dois lados da pipa. As vezes o problema é no gasgo, no peitoral ou na barriga, nestes casos é só fazer alguns ajustes. As vezes a pipa ficava no leso ou no treme...isso dava muita raiva, pois tinha que puxar a pipa de volta pra consertar ela e o bolo de linha só aumentava.

Era muito divertido no trapiche, muleques de outras ruas sempre vinham, dava até pra fazer novos amigos. Mas alguns eram muito barateiro, bronqueiro...

Quando alguém cortava uma pipa num laço, não tinha como não saber que isso aconteceu. Até quem estava dentro das casas sabia, pois a correria nas ruas de madeira era grande e tinha o já conhecido grito vááticee ou então váátice penosooo...esse é um momento de euforia pra quem esperou vários minutos o resultado de um laço.

Vááticee. A pipa vai chinando. Foi cortada.

Quando uma pipa era cortada...As vezes nem tinha tanta gente na rua, mas bastava alguém gritar vááticee, que saía muleques de tudo quanto é buraco, numa carreira desesperada atrás da pipa. Crianças desciam de árvores, saiam de dentro das casas, saiam debaixo da rua, desciam da rede elétrica (kkkkk...não pera)....sandálias havaianas não aguentavam a velocidade e arrebentavam pelo caminho.

Quando a pipa caía no quintal de uma casa era complicado! Pois o filho do próprio dono da casa podia pegar a pipa pra ele e também porque os muleques não podiam invadir o quintal alheio e não sabiam se tinha ou não cachorro. Mas sempre tinha aqueles corajosos que chegavam pulando a cerca e pegavam a pipa, mas sempre levavam um ralho do dono da casa.

Pra fazer cerol era problema pois se era pra fazer na própria casa tinha que ser escondido da mãe. Mas a melhor opção era fazer cerol em grupo na rua. Um dava jeito no vidro, outro trazia algo para pilar o vidro, outros ficavam com a tarefa mais difícil, roubar o caneco de alumínio da mãe...sem esse bendito caneco não tinha cerol. Cerol é algo muito perigoso, linha encerada pode matar, mas quando se é criança, não damos muita importância pra esse perigo... Infelizmente. Para fazer cerol, o ideal era misturar o vidro pilado com cola branca. Mas se não tinha dinheiro, o jeito era fazer cerol com mingau de farinha mesmo...kkkkkk. Dava pra fazer cerol com qualquer vidro, mas com lâmpadas florescentes eram melhores, pois fazia um cerol mais fino, deixava o cerol só do trisca.

Na maioria das vezes a galera encerava a linha na rua mesmo, amarrava a linha entre dois postes de luz e pronto. A parte chata eram as bikes que passavam por cima da linha e tirava todo o cerol. Isso dava raiva.

Aí eu estava numa boa e chegava a hora chata de ter que ir estudar...Sim, eu achava chato estudar, preferia passar o dia inteiro empinando pipa... Rsrsrs.

As vezes alguns iam para a rua as oito ou nove horas da manhã e ficavam perambulando por vários trapiches - a gente nem ligava para o sol escaldante. Aí dá onze horas, meio-dia...e minha mãe olha da porta da casa me procurando para almoçar..."mas cadê esse menino?"...

Até que ela consegue avistar a criatura lá na ponta do trapiche ou na beira da rua. A cor já não é a mesma, parece um pedacinho de carvão de tanto pegar sol. A mãe solta aquele berro "menino vem timbora almoçar, sai desse sol, tu não tem fome não?". Eu sempre dizia "já vou mãe". Ela vai para dentro da casa e depois de alguns minutos volta até a porta mais brava ainda, "menino vem logo comer, sai desse sol, vou já chamar o teu pai!".

Opa! Aí eu já começava a ficar preocupado, pois se ela chamasse o meu pai ia ser uma surra na certa!
Eu começo enrolar a linha para ir embora, mas meu amigo diz "dá o último laço"...então eu resolvo ficar mais um pouquinho, mas eis que aparece novamente a minha mãe na porta...xíii...

Não sei quem é esse piqueno, só sei que peguei da internet a foto.

Não tem situação mais vergonhosa do que a mãe ir buscar a gente no trapiche...e ela sempre vinha com uma sandália ou uma ripa na mão! Eu não sabia se dava a pipa para o meu amigo e corria ou ficava parado enrolando a linha...Dou a pipa para o amigo e minha mãe diz "bora muleque passa pra casa". Eu corro, mas ouço atrás de mim um barulho "pá" e sinto as minhas costas arder...foi uma sandalhada bem dada!



Ia pra casa almoçar com muita pressa e logo em seguida já queria ir de novo pra rua mas minha mãe me parava no corredor "bora moleque pode voltar, tu não vai mais pra rua". Eu ficava com muita raiva, mas obedecia. Eu ia para o pátio da casa observar, meus amigos já estavam no trapiche, debaixo de um sol de 1 da tarde. Minha mãe ia novamente me dar mais um aviso. "Tu acabou de comer, vai dormir, vai descansar o corpo".
Eu odiava dormir de dia. Eu deixava ela pegar no sono e fugia..Kkkkkkkkkkkk..

A tarde tudo se repetia, menos a parte em que minha mãe ia me buscar no trapiche. Assim que começava a anoitecer todo mundo ia embora pra sua casa. No dia seguinte começava tudo de novo, eu pego minha pipa e vou para o trapiche...

            Fim.

Mini dicionário com gírias e expressões usadas pelos empinadores de pipas de afuá.

LAÇO: momento em que as linhas adversárias se tocam no ar, existem muitas variedades.

PEZETA; pipa feia, que nem voa, nem sobe.

GUIZAR A PIPA; quebrar a pipa.

CORTOU E AROU; cortar a pipa e "segurar" ela com a linha.

CEROL MANTEIGA; cerol ruim, que nao corta nenhuma pipa.

RALHO; bronca.

CEROL DO TRISCA; cerol muito bom, bastava encostar na linha que já cortava a pipa adversária.

PENOSO;  adversário que tem pena de descair a linha ou que não gosta de dar laço, causa frequente de derrotas nos laços.

LAÇO PORCO; laço quando as pipas estão em baixa altura ou quando a pipa pega pela rabada da pipa do adversário.

DAR CABEÇA: manobrar a pipa para os lados e/ou para baixo;

LINHA BRANCA: linha não encerada.

RABADA; rabo da pipa.

PUIDOR DE LINHA; aquele que corrói com o dente a linha de alguém, para quando ele estiver empinando, a linha se arrebente no ar.

PENDURAR: puxar a linha para o papagaio subir rapidamente por baixo da linha adversária.

APARAR: usar a própria linha para segurar no ar um papagaio que vem chinando.

CHINAR; é o que faz um papagaio cortado, “vai embora para a China”.

REVIRAR; passar a linha sobre a do adversário até ficar quase fora do vento, e depois retornar, passando a linha também por baixo, tipo de laço mais eficiente.

ENTERRAR; dar cabeças na pipa deixando-a numa rápida trajetória para baixo.

BOLÔ NA LINHA; nó na linha.

DESCAIR: soltar a linha, principalmente durante o laço para que a pipa voe mais alto.

CEROL; goma feita pela mistura de cola branca ou mingau de farinha e vidro moido.

BODE: pedra ou peso amarrado numa linha, com o objetivo de baixar ou matar a linha de alguém. Também serve para puxar pipas engatadas nas árvores.

MATAR LINHA: reter ou subtrair a linha de um pipa chinada, que cai sobre o nosso quintal.

CASCO; canoa movida a remo.

RABEAR; pipa ficar girando no ar fazendo movimentos circulares.

PENSA; pipa que só vai para um lado.

PENSO; pedaço de fita ou sacola amarrado em um ou nos dois lados da pipa, para que não fique indo para um lado só.

GASGO: área da linha próxima da pipa.

PEITORAL: fio amarrado nos extremos verticais das tala das pipas, onde se amarra a linha.

BARRIGA: curvatura realizada manualmente na pipa (na barriga), para dar-lhe maior estabilidade.

LESO: estado de pouca força e peso em que o papagaio se encontra quando a linha é amarrada muito acima no peitoral.

TREME: estado oposto ao leso, em que a linha é amarrada mais ao meio do peitoral, causando muita tensão na linha.

BOLO: (de linha), onde fica armazenada a linha para empinar; a forma esférica favorece descair durante os laços.

BARATEIRO/BRONQUEIRO; pessoa que gosta de causar confusão.

VÁTICE/VÁTICE PENOSO; grito que se dá quando uma pipa é cortada, quando ela vai chinando.

ENCERAR: (a linha): adicionar cerol.

RIPA; pedaço de pau fino.

SANDALHADA; pancada com uma sandália.